🛸 olá, internautas! 🛸
tenho pensado nas culturas da internet mais do que o costume. não falo das culturas que surgem on-line, mas das culturas da internet, do que existe com ela e por causa dela. por muito tempo, a gente falou da internet como se fosse uma coisa só, que só podia gerar um único tipo de lógica e comportamento. mas desde que comecei minha pesquisa, adotei a proposta da minha orientadora de que, na verdade, existem duas culturas da internet e elas co-existem nas nossas práticas e imaginários coletivos.
fico pensando em como millennials costumam falar com saudosismo e nostalgia de “uma outra internet”. a estrutura de redes não mudou. com tantas novidades da tecnologia digital, a internet per se não mudou. ela continua a mesma, mas nossas experiências on-line mudaram radicalmente. e isso não tem a ver com A Internet, mas com os usos que estão e estamos fazendo dessa técnica.
mas em vez de falar dessas diferenças, antes eu queria falar um pouquinho de história. pfvr prestem atenção. nada disso não vai cair em prova porque essa acadêmica que vos fala não acredita nessa maneiras de demonstrar conhecimento, mas isso aqui vai ser muito importante pra sua vidinha no século xxi.
isso aqui vai ser muito importante pra sua vidinha no século xxi
a internet nasceu da junção do militarismo estadunidense com os hippies da costa oeste. essa é uma mistura completamente maluca que só podia existir nos eua, o único lugar do mundo que acredita que pode haver liberdade através do exército, e isso importa pra essa história.
em nenhum outro canto do globo tu vai encontrar um maluco que acredita que militar é sinônimo de liberdade. o maluco pode até achar que militar é coisa legal (não é), mas essa pessoa sabe que militar ali pra controlar os outros. estadunidense não sabe disso. eles genuinamente acreditam que é possível impor a liberdade através de uma instituição armada, violenta e financiada por bilionários. é que o walt whitman era um excelente escritor. então quando ele falou bem da revolução americana (estadunidense), os estadunidenses não pensaram hmm talvez confiar em um estado armamentista não seja uma boa opção. na vdd, eles pensaram que, bom, se a inglaterra é tão do mal, a gente tem que dar um jeito de estar sempre protegido – o que numa cabecinha de minhoca significa armar a população e criar um governo armamentício com um poder bélico assustador que ataca todo mundo que não está de acordo com o ideal estadunidense seja dentro ou fora do nosso país! imagina a diferença que seria se os estadunidenses tivessem lido walt whitman e só pensado nossa, realmente, a natureza é foda e bissexuais são gostosos!
então, em vez de simplesmente educar sua população a desenvolver pensamento crítico e a criar organizações civis que compõem uma rede de sustentabilidade que permitiria a construção de senso de comunidade (algo que quase ninguém fez, na vdd), os estadunidenses decidiram simplesmente investir em arma. afinal, nada mais construtivo, ético e libertador do que matar gente em massa, né não?
por que importa saber disso? porque uns 200 anos depois, lá pra 1960, os eua estavam no auge da guerra fria, o governo investindo uma baba no exército e daí os militares inventam essa moda de criar uma rede cibernética pra comunicação interna e, er, facilitar espionar os soviéticos, porque eles queriam mt, mt mesmo ter mais poder que qualquer outro estado do mundo e é difícil fazer isso com o comunismo rolando solto. só que militar sozinho não é lá a coisa mais inteligente do mundo, então eles literalmente pediram ajuda dos universitários.
eles literalmente pediram ajuda dos universitários
existem dois tipos de universitário, e os dois são hippies. acontece que existem os hippies com consciência de classe e os hippies sem consciência de classe. isso também tem a ver com a história dos eua, e que se resume muito mal assim: o povo da costa leste (ny etc) tinha consciência de classe porque vinha de trabalhador explorado, o povo da costa oeste (são francisco, la etc) não tinha consciência de classe porque vinha da galera que curte ir pro bar. eu disse que era um resumo ruim.
o que importa é que, historicamente, a esquerda da costa oeste era muito mais ligada ao estilo de vida hippie do que aos ideais hippies. o idealismo utópico, a fuga da sociedade hegemônica, o amor livre etc e tal eram encarados não como práticas políticas que desmantelavam o sistema capitalista patriarcal ao qual eles se opunham, mas muito mais um jeito daora de viver.
então, quando os militares chegaram abanando dinheiro dentro das universidades e falando “oi louquinhos o que acham de criar uma brisa pra gente?”, esses universitários, em sua grande maioria, não pararam e passaram “puxa vida não confiamos em militares porque eles são parte do sistema exploratório que está acabando com o mundo e é fundamentalmente anti-ético e, portanto, não devemos ajudá-los jamais”, não. na vdd, eles disseram: “oba! dinheiro!”.
oba! dinheiro!
o que os militares pediram pra esses universitários era a criação de uma rede cibernética digital descentralizada. era importante ser uma rede porque precisava haver comunicação entre diferentes bases e setores militares e estatais. era importante ser descentralizada porque se houvesse algum tipo de invasão ou ataque, os soviéticos não conseguiriam acessar todos os dados guardados nos servidores estadunidenses. eles também não conseguiriam danificar toda rede de uma só vez.
o que hippies sem consciência de classe fazem com pouco dinheiro? viajam doidos de droga. e com muito dinheiro? projetos diy. ok, agora a gente junta os dois.
a ideia de uma rede de comunicação descentralizada era apelativa pros universitários hippies, não necessariamente pelos mesmos motivos dos militares, mas muito mais pela noção de descentralização do poder. afinal, uma coisa que sabemos sobre hippies é que eles não curtem o estado centralizado. e essa nova tecnologia que os militares estavam propondo tinha essa potência dupla, descentralizadora e difusora. quer dizer, não que os militares quisessem algo pra difundir pras massas naquela época, mas se estamos falando de uma tecnologia de comunicação e informação que conecta diferentes máquinas de uma maneira descentralizada… por que não usar isso pra difusão de informação?
por que não usar isso pra difusão de informação?
essa nova tecnologia que os universitários estavam criando em conjunto com os militares parecia servir perfeitamente a necessidade militar de controle ao mesmo tempo em que podia ser a base pra essa utopia tecnológica comunicacional que só um moleque de 20 anos hippie vindo de uma família rica acreditaria ser possível. então, quando os militares conseguiram o que queriam com o projeto da arpanet e viram que aquilo tudo tava ficando doidinho demais pra eles, eles pularam fora do barco. mas os universitários continuaram.
esse projeto era a cara da tal era de aquário. pois pense: aquário, signo de ar fixo, regido por saturno e urano. o ar rarefeito, no alto da atmosfera, vendo tudo, indo de um lado a outro. ar, comunicação. estruturada como saturno, revolucionária como urano. você não esperava por um momento de astrologia aqui, né? mas isso também faz parte da era de aquário, buscar outras lógicas, outras formas de ver o mundo. e esse novo projeto podia expandir essas tantas visões, dava a possibilidade de todos, tipo, todos mesmo comunicarem suas visões, seus conhecimentos, encontrarem novas informações, conhecerem novas pessoas com outras visões, cacete, se conectarem, criarem redes.
é lindo, não é? você ter acesso ao mundo inteiro. construir e reconstruir sua visão de mundo, suas perspectivas compostas com a de tantos outros. você criar relações com alguém do outro lado mundo, do bairro da sua cidade em que você nunca pôs os pés. você não precisar ir à biblioteca e passar horas entre livros e mais livros pra encontrar uma única informação, não depender dos livros que estão ali, do tempo de aluguel. não depender das instituições que existem à sua volta, que dizem o que pode ser dito, pensado, falado, lido. você construir em conjunto um novo glossário, uma nova enciclopédia, uma nova ideia ou corrente de conhecimento. e saber que esse conjunto de gente que o constrói não é só você e seus colegas, seus amigos, seus familiares. esse conjunto é o mundo inteiro.
tá, quer dizer, no começo, o conjunto não era o mundo inteiro. na vdd, as primeiras redes digitais eram locais, dentro das próprias universidades estadunidenses. depois, intra-universidades. mas por que não ser o mundo inteiro? por que não criar uma rede que juntasse todas as outras redes? por que não juntar o mundo inteiro?
foi assim que surgiu a internet, a rede mundial de computadores.
a internet, a rede mundial de computadores
o negócio da internet é que, quando ela ficou só nas mãos dos universitários, já existia um sistema de computadores com fiação, protocolos, linguagem e funcionamento. esse sistema foi criado junto com os militares. não dava pra mudar o sistema todo. e, honestamente, muitos dos universitários, já envolvidos com o projeto desde a arpanet nem viam a necessidade de fazer diferente.
eu falei que era importante, então vamos repetir: o problema de hippie sem consciência de classe é que, no limite, eles não têm raiz ideológica. e sabe o que acontece com o que não tem raiz ideológica? o capitalismo corrompe. porque o capitalismo é uma ideologia imperialista, que se entranha em tudo que consegue alcançar e explora humanos, animais, plantas e territórios até não sobrar mais nada. é tipo militar.
mas o que isso significa pra internet? significa que ela opera em duas lógicas não excludentes. por um lado, as redes digitais permitem a difusão e o espalhamento das informações. a capacidade de circulação é multiplicada de maneira exponencial, e pode chegar a muitos lugares diferentes exatamente porque esse alastramento se dá entre infinitas redes. por outro lado, isso também significa que todo esse fluxo de informação é controlado e selecionado por alguém. a necessidade do controle e da seleção vêm da raiz militar. a capacidade de difusão e espalhamento vem da raiz hippie.
e o lance é que a internet só funciona com essas duas coisas juntas. sem difusão, não existe o que acessar on-line. somos subjugados majoritariamente ao acesso de informação limitada dada pelas instituições hegemônicas e perdemos muito da agência e espaço de fala que construímos nas últimas décadas. sem controle, qualquer coisa pode circular on-line. não conseguimos parar a circulação de mentiras ou de imagens nocivas (como fotos de mulheres nuas publicadas e circuladas sem consentimento) nem traçar os agentes propagadores para que sofram consequências de seus atos. pra internet existir no mundo em que vivemos, precisamos dos dois: difusão e controle.
acontece que a gente precisa saber medir o tanto de cada, e eis aqui o problema atual. ou, bem, não é atual, porque desde o início da internet tem gente falando disso e batendo em teclas (trocadilho intencional) como direito ao código aberto e como construir uma internet não capitalista. mas pra cada pessoa que luta por essas coisas, tem pelo menos umas vinte empresas lutando pelo oposto. e o negócio é que, estruturalmente, tecnicamente, dá pra pender pra qualquer um dos lados.
agora adivinha quem ganhou?!
agora adivinha quem ganhou?!
tá, “ganhar” não é o melhor termo. até porque essa briga é constante e contínua, nada está ganho, nada está perdido. mas adivinha então quem conseguiu mais poder para impor sua lógica de fazer?
pois é, os capitalistas. e, por capitalistas, não quero dizer os doidos que vão pra manifestação de direita com a cara pintada. sim, estamos falando de magnatas e bilionários. também estamos falando de governos inteiros, como o dos estados unidos, mas pode colocar a europa toda e grande parte da américa latina, áfrica e ásia. na verdade, só põe um asterisco em alguns países, tipo china, coréia do norte, cuba e, só pra causar nessa lista, frança. eu não vou falar deles porque ainda não tive tempo de entrar nas suas histórias. e, pra ser honesta, minha prioridade é saber da história do chile do allende, mas isso vai ficar pra muito depois. agora, o que temos que entender é que nenhum bilionário se faz sozinho, nem mesmo os tech bros. eles precisam da ajuda de um estado bancando decisões favoráveis pra criação e estabilidade da indústria de tecnologias digitais e eles conseguiram isso com muitos dinheiros, favores e exploração de trabalho e recursos naturais.
o fato de ter sido esse grupo específico de pessoas, empresas e instituições que obteve poderio sob a internet significa também que eles puderam continuar a construi-la a partir das suas lógicas. com isso, estamos falando, por exemplo, da ideia de que a internet é infinita em um mundo finito. ou de que certas informações (tipo o código que diz como aquela plataforma funciona) não pode ser de acesso público, porque isso seria “dar aos outros um trabalho feito por nós”, trabalho esse que também é visto como uma posse, algo individual. ou, sei lá, a ideia de que precisamos criar hierarquias entre usuários como forma de controle de fluxo de informação. ou de vender essas hierarquias como uma “retribuição" pelo seu trabalho. ou de atribuir valor através do acúmulo. ou de ter que dar um jeito de criar um sistema de geração e circulação de capital financeiro, porque do que adianta um bando de gente ter acesso a informação se eles não vão nos dar dinheiro pra isso?
mas… talvez… ter tanta gente assim com acesso a informação não é boa ideia, né? tipo… e se a galera começa a ler marx? e acredita nisso? e se a galera começa a conversar sobre tirar nosso poder? nosso santo dinheirinho? nossa influência política? hmm, talvez dar uma selecionada no que se tá falando não seja uma má ideia… talvez a gente até dê um jeito de diminuir a circulação do que tá sendo postado… porque, tipo, é claro que a gente acredita em liberdade de expressão, mas isso não quer dizer que a gente tem que dar palco pra todo mundo, né? as pessoas têm ideias ruins! tipo a tomada dos meios de produção e redistribuição de riquezas e recursos! não dá pra ter um mundo ideal, isso é coisa de jovem, por isso que fui hippie nos anos 60. mas agora eu cresci, eu entendo do mundo, eu sou dono de uma empresa e exploro trabalho humano e recursos naturais. não posso dar a chance de me impedirem de disso. e, puxa vida, olha só!, o estado estadunidense, uma instituição completamente razoável e que nunca fez mal a ninguém, concorda comigo e pode me ajudar a manter todas as minhas propriedades privadas!
é, pois é.
é, pois é
o problema é sempre mais embaixo. mas eu queria contar sobre a história da internet por dois motivos. o primeiro é que me parece fundamental entender que, desde a sua criação, a internet foi feita e tem espaço para o nível de controle que está sendo aplicado pelas big techs atualmente. isso não é novo. a internet não mudou no sentido de que a sua estrutura técnica continua sendo a mesma. e essa estrutura técnica permite que esse controle seja feito. aliás, ela foi criada, primeiramente, pra isso. e não são só as grandes empresas que se beneficiam. comentei pra por um asterisco no caso de alguns países que têm uma história de internet diferente, mas todos eles só conseguiram isso porque a técnica da internet é uma técnica de controle.
mas essa técnica também é de espalhamento e difusão. ela também permite comunicação em massa e outras formas de organizacionais que saem dos moldes hegemônicos capitalistas que conhecemos. aliás, os capitalistas só estão se esforçando tanto com as partes de controle da técnica porque muita gente a utilizou para se organizar de novas maneiras, maneiras que assustam e ameaçam a estrutura de poder que eles mantêm.
existe um lado bom do controle quando vivemos em um mundo que incentiva e recompensa tantos atos nocivos à população, especialmente minorias oprimidas. existe um lado ruim do espalhamento que permite a circulação em massa de mentiras e ideias nocivas à segurança da população. existe um lado bom do controle de barrar essas mentiras, garantir a divulgação de verdades e fatos.
todos esses são jeitos de se usar essa técnica. e ela permite algumas práticas e ideologias enquanto limita outras. eu me pergunto muito como usar a internet - e toda digitalidade - como uma ferramenta no mundo em que vivemos para a construção do mundo que desejo. não tenho a resposta. essa newsletter é também uma maneira de articular essas milhões de respostas possíveis, de podermos articular isso juntes. e entender melhor a história da internet é uma maneira de ver também erros e acertos, de lembrar tudo que é possível, do que precisamos prestar atenção. não dá pra cair no conto do vigário, do capitalista, muito menos do militar.
meu segundo motivo com essa história toda é lembrar que a internet é construída por humanos. dentro e fora de instituições, empresas, estados. ainda assim, estamos falando de humanos. estamos falando de uma porrada de gente que acredita em diferentes práticas, opera em diferentes lógicas, acredita em diferentes ideias. a gente, eu, você, cada um de nós, faz alguma parte disso. e a gente também pode se juntar e exigir, construir, manter práticas e lógicas que operam a partir das nossas éticas e ideologias.
a internet não mudou. mas nós estamos mudando. o que vamos fazer com isso tudo, então?
bjoks,
clara
vou mandar essa newsletter pra todos que leram a ideologia californiana e não entenderam
amei demais!! que boas reflexões. beijos!!