🛸 olá, internautas! 🛸
entrei no mundo da internet das garotas dez anos atrás, quando decidi junto com outras 80 meninas criar uma revista on-line para garotas adolescentes. na época, eu tinha recém feito 19 anos e estava descobrindo que ser alguém Da Internet podia ser algo maneiro. é que, dez anos atrás, a internet ser maneira ainda era novidade. antes da década de 2010, isso de ficar mexendo no computador (porque era computador, não celular) era meio que coisa de gente esquisita que não tinha vida social, e eu, como uma boa adolescente, era meio esquisita mas também tinha vida social, o que significava que nunca me apropriava muito do meu gosto por estar on-line, por mais que ele claramente estivesse ali. a real é que me sentia nesse meio termo estranho, em que não sabia nem o que era maneiro “na vida real” nem o que era maneiro na internet. mas quando fiz 19 anos, tudo mudou.
fico contente que agora estamos começando a criar uma tradição de músicas sobre ter 19 anos. fico pensando num trecho de the idiot, da elif batuman – livro que nem gostei, mas que achei uma coincidência enorme encontrar essa frase enquanto escrevia essa newsletter:
But, to me, nineteen still felt old and somehow alien to who I was. It occurred to me that it might take more than a year – maybe as many as seven years – to learn to feel nineteen.
porque existe Algo sobre os 19 anos. é a taylor swift olhando pra trás e dizendo quase gritando que ela teria ficado ajoelhada em vez de ter dançado com o diabo; a olivia rodrigo assoprando as velas no seu aniversário sabendo que ainda tem a vida inteira adiante e, mesmo assim, triste e culpada por envelhecer. mas, pra mim, o que me pega mesmo, de verdade verdadeira, é a lorde de saião vermelho e sutiã combinando, no calor do palco do popload de 2018 com uma multidão em que eu e tantos, tantos amigues fizemos parte cantando em plenos pulmões: i'm 19 and i'm on FIRE. eu já tinha 24 anos, mas não importava. pure heroine foi lançado quando tinha 19 anos e ele foi fundamental pra confirmar algo que eu já sentia no meu âmago: nós, garotas, tínhamos muito a contar.
não era só eu que achava isso, logo vim a descobrir – e descobri por causa da internet. com as minhas 80 novas amigas, descobri muito sobre garotas e sobre outras garotas que, como nós, pensavam muito sobre suas experiências. foi quando conheci as coisas da tavi genvinson, a rookie e a petra collins. foi quando vi repetidamente a mesma foto de lora mathis, que carregava uma mensagem que por muito tempo me repeti: suavidade radical como uma arma.
essa foi uma das primeiras fotografias que coloquei como corpus da minha pesquisa de mestrado e, até hoje, depois de revisar o projeto, aumentar e diminuir drasticamente o corpus, mudar deus sabe quantas vezes o foco da pesquisa, qualificar, mudar mais uma vez de ideia etc. e tal, essa fotografia segue firme e forte comigo. não necessariamente porque gosto dela, mas porque ela me parece emblemática de muita coisa que quero dizer.
muito está no rosa. nas facas. mas tudo parece estar nessa única palavra: softness, uma palavra que ficada cada vez mais difícil de traduzir. é maciez, suavidade, maleabilidade, é mole. soft chama pra doçura, delicadeza, fofura, leveza. é um algodão doce, aquela nuvem rosa tomando um espaço enorme e se desmanchando com um simples toque.
no primeiro ensaio de sobre aquilo em que eu mais penso, intitulado “desejo e sujeira: ensaio sobre a fenomenologia da poluição feminina na antiguidade”, a anne carson demonstra como os gregos antigos atribuíam fatores “aquosos” às mulheres e à feminilidade:
Aristóteles nos diz que o molhado é aquilo que não tem qualquer limite intrínseco, mas que pode facilmente ser delimitado, enquanto o seco e aquilo que tem limites intrínsecos, mas que dificilmente é delimitado por outros. A partir desse raciocínio podemos diferenciar mulheres e homens não apenas como molhadas e secos, mas também como não delimitadas e delimitados, conteúdo e forma, poluídas e puros.
ela diz: “Pode-se definir sujeira como ‘matéria fora do lugar’. […] Sujeira é a matéria que atravessou um limite que não devia ter atravessado. Ela confunde as categorias e mistura as formas.” daí o problema das mulheres: elas bagunçam o que tá arrumado, não têm limites e, então, poluem e são poluídas.
lora mathis provavelmente não sabia de toda essa tradição fenomenológica, mas elu sabia que algo na experiência feminina poderia incomodar um sistema a ponto de isso ser uma arma. e elu sabia que isso era o fator softness. lora mathis também não estava sozinhe pensando sobre as vivências femininas. na real, se você pegar as entrevistas e artigos da época, muitas artistas atribuídas ao “olhar feminino” (female gaze) usam esse termo para falar de feminilidade e do que aspiravam passar com as suas obras.
tons pastéis de rosa, amarelo e azul e imagens granuladas são duas das características mas comuns das fotografias que foram chamadas de representantes do olhar feminino. existem, é claro, outros fatores e, nem sempre, os tons pastéis e a granulação estão presentes, mas são duas das coisas que mais se destacam. isso, pra mim, faz sentido como forma de produzir materialmente esse efeito de suavidade/ maciez etc. e o bom de escrever uma newsletter e não uma dissertação é que não preciso explicar por quê.
acontece que, entre 2014 e 2016, eu tinha muita raiva das artistas que faziam sucesso on-line e off-line que eram descritas como representantes do tal “olhar feminino”. não era nada contra as imagens, porque, na verdade, eu amava todas. mas me irritava profundamente ver tantas outras garotas da mesma idade que aquelas artistas – que era também a minha idade – fazendo coisas tão incríveis ou mais e não ganhando 1/10 de reconhecimento que as gringas ganhavam. eu achava um absurdo minha amiga laura viana não ser reblogada como a olivia bee era. eu sabia que tinha a ver com estarmos no sul global e sermos falantes de português. eu pensava muito sobre geopolítica e o que depois vim a descobrir que é nominado glotopolítica. mas também tinha mais coisa e eu ainda não tinha palavras pra isso.
um dia, conversando com a laura, ela me disse que gostava dessas fotografias porque todas são lindas, mas não podia deixar de sentir um incômodo com elas. eu sentia o mesmo. alguma coisa nelas me irritava profundamente, e isso incluía a beleza delas. incluía o fato de que eu achava tudo lindo. me irritava que chegou um ponto lá pra 2017 que tinha gente demais fazendo imagens do mesmo tipo, que aquelas fotos já apareciam em propagandas da gucci, que eu sabia identificar todas as fotografias do tal “olhar feminino” mas não sabia descrever o que fazia com que eu as identificasse de tal maneira. me irritava o rosa. me irritava quando não tinha rosa. me irritava a granulação das imagens. me irritava a lisura delas. me irritava como tudo era tão montado e como ainda parecia completamente natural. foi por isso que decidi fazer mestrado sobre o assunto. porque tudo me irritava.
esse estilo de fotografia continuou ganhando popularidade. quando fui parar pra escrever meu projeto de mestrado, me dei conta que até homens já começavam a reproduzir aquele estilo. mas como é que homens podiam fazer algo que era pra ser o olhar feminino? algo estava errado. tava errado no clipe do remix de bixinho ser dirigido por um homem. continuou errado quando o sam levinson fez euphoria.
o tanto de gente que me mandou a notícia de que a petra collins deu uma entrevista dizendo que o sam levinson roubou a propriedade intelectual dela em euphoria na real não foi tão grande (03 pessoas), mas foi o suficiente pra me fazer vir aqui comentar do assunto. foram alguns motivos diferentes que me levaram a decidir isso. o primeiro é que 03 pessoas já é gente demais vindo falar sobre o mesmo assunto comigo. o segundo é que, sinceramente, não me surpreende em nada essa história porque 1. o sam levinson é escroto; 2. qualquer grande produtora/ emissora de tv é escrota; 3. é horrível dizer isso, mas, apesar de ser um literal crime e que deve ser punido, a escolha faz sentido. mas, antes, deixa eu explicar um pouquinho quem é a petra collins.
pra quem não sabe, a petra collins é basicamente o maior nome relacionado ao olhar feminino da década de 2010. ela começou a postar suas fotos num tumblr em 2009 e depois foi publicada na rookie (o que é importante porque a tavi já era famosa, o que fez com que a petra ficasse famosa meio rápido). no começo, ela basicamente fotografava a sua irmã mais nova, anna (que, inclusive, agora é modelo kk), com as suas amigas. as fotografias passavam uma sensação de intimidade e retratavam algumas coisas muito próprias da vivência de garotas adolescentes e, bom, pra resumir, essas fotos rodaram muito a internet das garotas. a petra virou a queridinha da i-d e da dazed por um tempo, o que só deu mais plataforma pra ela, que em 2017 já tava fotografando e dirigindo campanha pra gucci.
a petra collins fez tanto sucesso que falar de “olhar feminino” e falar de petra collins era praticamente a mesma coisa. eu mesma costumava descrever o estilo de fotografia muito mais como “tipo a petra collins” do que chamar de “olhar feminino”. e essas revistas on-line contribuíram muito pra isso também ao aproximar as duas coisas e a nunca explicar muito bem o que era o tal “olhar feminino”. esse foi um exercício que fiz no meu projeto de mestrado e que até agora ainda me dá um pouco de dor de cabeça. mas foi também essa percepção de que existia um monte de gente que tava fazendo a mesma imagem que fez com que eu me perguntasse se estávamos vendo um movimento ou um enxame.
o caso da petra collins é muito interessante não só por ser o de maior sucesso, digamos assim, mas também porque ela mesma já foi a público algumas vezes trazendo questões interessantes sobre a forma com que vêem o trabalho dela e como a sua própria visão da sua obra mudou ao longo do tempo. eu gosto muito de um bate-papo com a tavi que elas fizeram no lançamento do coming of age, um livro que reúne as fotografias que a petra tirou da irmã ao longo da adolescência dela, em que a petra admite que, agora, percebe que o que ela tava fazendo muitas vezes era sim reproduzir o olhar masculino.
agora, como uma pessoa que a acompanha faz dez anos, achei particularmente interessante quando ela lançou o livro Miért vagy te, ha lehetsz én is?, ou: por que ser você quando cê pode ser eu?, pela baron. aqui, pela primeira vez, achei que a petra collins tava fazendo algo novo, diferente do que ela fez por quase dez anos e que tanta, tanta gente copiava há pelo menos outros cinco. de certa forma, esse projeto trabalha com os mesmos temas que ela costumava trabalhar (feminilidade, sexualidade, juventude, vida suburbana etc.) mas com uma virada de horror muito interessante, especialmente porque os elementos de horror são muito relacionados à estética da realidade virtual que temos.
então, quando veio a fatídica entrevista em que ela fala sobre euphoria, o que mais me chamou atenção foi a parte em que ela fala sobre essa série fotográfica:
That series was an exorcism to me. I had to change my style because of Euphoria. Lots of people started to take photos in that style and I haven’t felt any more as mine and I felt disconnected from that. I need to find myself again, cause I didn’t resonate with this anymore. That was a big turning point in my life. That body of work I liked so much, because I felt so disconnected from my body, from my work. I was like how do I get myself back to my body? I don’t do self-portraits, I physically need to hold the camera, because lots of my work come is in camera. I also felt violent towards myself, and my body, and I needed to create another version, and it was really therapeutic and exciting to place myself anywhere, photograph myself from any angle. That series was a starting point to create a newer style of photography for me.
em itálico estão as partes que se relacionam com as noções de horror que ela passou a trabalhar desde então. em negrito, as partes em que ela admite consciência de que não podia mais seguir com o mesmo estilo porque ele não era mais dela.
na mesma entrevista, ela fala sobre como seu tema principal sempre foi sexualidade, mas em outra resposta comenta que, hoje em dia, seus interesses são “a percepção da realidade e a vida on-line, e como as pessoas controlam suas narrativas visuais e suas imagens”. e, aqui, novamente, me interessa como ela decide trabalhar isso com elementos de horror. corpos modificados, casas pegando fogo, corpos mutilados, cópias de si mesma, inundações de líquido preto e grosso. é caótico. é feio. é sujo.
ainda assim, é lindo.
como uma pessoa pra quem estética importa muito, eu me pergunto com frequência sobre o papel da beleza nessas imagens. sei que existem muitas vertentes críticas que colocam a beleza quase como um problema, algo que deve ser superado estética e plasticamente e, apesar de entender e ver a coerência dos argumentos, não posso deixar de precisar de beleza. e é esse mesmo o verbo: precisar. meus olhos fisicamente doem se só vejo coisas feias e meu humor piora drasticamente. é um pouco ridículo escrevendo assim, mas essa é uma questão que tem sido muito importante pra mim e que tenho elaborado em níveis muito diferentes. inclusive, se esse assunto te interessa, cê pode ler a edição A vida passa vertiginosamente, da minha newsletter algodão puro,
.a beleza que procuro e preciso é diferente da beleza das obras da petra collins. ainda não consigo uma boa definição para o que é beleza (juro que ainda vou me versar em estética), mas o que mais ecoa pra mim foi o que escrevi em um poema de 2018:
A beleza é o conhecimento profundo
da própria realidade.
não sei se acredito nisso. de certa forma, acredito no oposto: a beleza é a falta total de conhecimento, o outro, a alteridade. mas tenho pensado muito nesses versos sem o contexto do poema. pensado na criação da beleza como imanência e na sua contemplação como transcendência. mas aqui o papo vai sair da rota atual. no fundo, minha questão aqui é mais relacionada a coopção.
a petra collins admite que seu olhar é/ era contaminado por uma educação vinda de um olhar patriarcal. de certa forma, ela o reproduzia inconscientemente. mesmo quando ela tentava fazer algo que fugia desse olhar, ela não conseguia exatamente porque ele faz parte de sua formação visual. foi assim que ela e todas nós fomos ensinadas o que é belo e o que não é. mesmo que desviemos um pouco das normas, ainda existem resquícios.
a minha questão é que, quando revistas de moda e entretenimento, grandes marcas e produtoras, e outras grandes instituições que dão as cartas do jogo sistêmico do entretenimento olham pra essas obras ambíguas, o que elas vêem são os resquícios hegemônicos. e trazer as obras para perto de si é uma forma de transformar a ambiguidade em certeza: não se nasce hegemônico, torna-se.
os olhares contaminados são cooptados. o sistema da indústria neoliberal os atravessam e, nesse atravessamento, a chave de leitura e interpretação muda.
é por isso que não me surpreendeu o roubo de propriedade intelectual da petra collins pela hbo/ sam levinson. numa conversa com minha amiga jumed, falamos de muitos pontos nesse caso de plágio (ou, ok, acusação de plágio), mas o que me interessa de trazer aqui foi o último que discutimos, em que falei: esse caso é interessante porque mostra o tanto que o female gaze que foi tão circulado por revistas de moda e comportamento não é e nunca foi um movimento, mas sim um enxame rapidamente cooptado pelo mundo da moda e do entretenimento (profundamente capitalista). e, por mais que a petra collins já tenha falado um pouco sobre isso em outras entrevistas – sobre como ela acreditava que criava um olhar feminino mas que, olhando com distância, ela percebeu que, no fundo, ela só produzia o olhar patriarcal –, ainda é fácil fazer a volta argumentativa que ela mesma fazia pra dizer que não é esse o caso. mas esteticamente isso é inegável.
esses fatores ajudam uma grande empresa a se interessar pelo trabalho dela ou, bom, “tipo o dela”. a obra da petra collins acaba sendo extremamente propícia de ser plagiada não só porque ainda existe muito a ideia de que, se a coisa tá na internet, ela não é de ninguém, mas também porque ela entra em um espaço difícil de discussão em que dá pra usar a desculpa de que essa é uma estética comum em certos nichos on-line e que é uma "inspiração geral". afinal, se o “olhar feminino” é um estilo ou uma tendência, dá pra dizer que a petra collins é a percursora desse tipo de imagem, mas que existe um nicho grande e muita, muita, muita gente faz coisas parecidas com a dela desde a rookie, pelo menos (eu diria até que antes). e, com isso, outras pessoas se blindam de casos de plágio, especialmente quem tem a proteção de todo um sistema corporativo.
tudo isso só demonstra que o “olhar feminino” não é intrinsecamente feminista e que ele é facilmente cooptável. no fundo, ele serve ao modelo neoliberal atual, que segue sendo hierárquico e patriarcal (porque sem revoluções não se mudam sistemas! então se segue o mesmo modelo econômico, segue também o mesmo modelo social! ou seja! se tem neoliberalismo, tem patriarcado).
essa é a primeira parte de duas. a minha ideia era escrever um único texto falando sobre a internet das garotas, elaborando algumas diferenças e semelhanças sobre como abordamos feminilidade on-line durante a década de 2010 e como isso acontece hoje em dia. acabei escolhendo por dividir o texto pra poder desenvolver melhor algumas questões sobre a década passada pra poder, então, discutir algumas das tendências atuais, que é do que trataremos na próxima newsletter.
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até a próxima!
clara, eu realmente me delicio lendo o internet3t!!! só queria deixar isso registrado
Clara, o que você acha do clipe de fetish da selena gomez? eu conheci a petra por conta desse clipe. vc gosta dos clipes da olivia rodrigo que ela dirige?