o que dizem quando dizem que a internet morreu
tentando separar a cibercultura da cultura digital
🛸 olá, internautas! 🛸
na edição de março, falei que tenho pensado muito sobre as culturas da internet e daí meio que não falei direito dessas culturas. eu não estava louca, só queria antes de qualquer coisa explicar mais do surgimento da internet. queria fazer isso não só porque é uma história muito particular e curiosa, mas também porque esse início de tudo é o que também explica muito das culturas digitais que temos hoje em dia. sabe essa sensação que muites na internet falam com constância de que a internet não é mais a mesma? ou ainda essa ideia de que “a internet morreu”? pois bem, ela vem daí.
a ideia de intitular a newsletter passada como a internet não mudou é exatamente de insistir de que não teve uma mudança na estrutura da internet, o que acontece é que essa técnica tem sido usado de uma maneira diferente da que tínhamos até pouco tempo atrás. a internet não mudou, a internet não morreu. a internet está vivíssima. o que acontece é que a internet está sendo usada como uma técnica de controle, muito mais que de espalhamento. e isso impacta demais as nossas culturas.
a gente viu na edição passada que a internet foi criada com esses dois intuitos: controlar e espalhar. não existe internet sem um ou outro, ela precisa servir aos dois propósitos porque ela foi criada pra isso; essa é a base, o centro, a essência dessa técnica. a gente também viu na edição passada como essas duas coisas vêm de duas raizes muito diferentes que se encontraram nesse projeto, os hippies e os militares. e eu quero usar isso pra conseguir construir com vocês como pensamos as culturas na internet.
a gente costuma falar da “cultura da internet” como se fosse uma coisa só, uma única linha que une todes usuáries. mas nesses últimos 15 anos vivemos uma mudança drástica que obrigou a todes nós a olharmos em volta e notarmos que, epa, existem maneiras muito diferentes de usar a internet. o que su amigue, parente, colega, vizinhe, conterrânee do planeta terra tá vendo é bem diferente do que você tá acessando on-line. a maneira como se encara a própria técnica da internet varia. então não dá pra falar de uma única cultura, dá? deixa eu responder pra vocês: não, não dá.
tem gente que vai dizer que existem múltiplas culturas on-line. e, de fato, elas existem. mas o que tenho pensado não é nas culturas que existem “dentro” da internet, mas naquelas que existem por causa dela. vamos diferenciar: culturas on-line são as culturas que usam a internet como técnica para agregar usuáries e espalhar suas ideias (a quarta onda do feminismo, os incels, vaporwave, cottagecore, sei lá), mas as culturas da digitalidade são aquelas que se instauram com, através e por causa das técnicas digitais. elas estão na materialidade dos nossos dispositivos, não nos dados que inserimos neles.
a proposta com a que tenho trabalhado, que vem da minha orientadora, é que podemos delinear duas culturas diferentes que crescem e se organizam com os dispositivos digitais. não uma, não múltiplas: duas. e o lance é que elas vêm exatamente dos dois grupos que criaram a internet. ou seja, os hippies e os militares. o que volto a dizer que é uma combinação muito esquisita. bato nessa tecla porque acho que isso nos ajuda a entender porque nós mesmes achamos tão esquisito falar da internet e de suas culturas. porque ambos, militares e hippies, impuseram seus valores e visões de mundo na construção dessa técnica. e ambos tiveram que ceder um pouquinho pro outro também.
então os militares toparam umas coisas meio doidinhas. tudo bem, o lsd foi criação do militarismo de qualquer jeito, eles conseguem lidar. e os hippies toparam dinheiro. o que, tipo, até daria certo, mas lembremos que esses são os hippies que não têm consciência de classe. e, sem consciência de classe, a pessoa com dinheiro fica bem esquisita, pra dizer assim de um jeito simpático.
então, o que sai dessa combinação? a internet. mas o que sai da internet?
mas o que sai da internet?
em resumo, saem duas lógicas diferentes, mas não excludentes. por um lado, sai a lógica do espalhamento e da difusão. aqui, a informação é extremamente valorizada porque deve ser circulada, porque deve ser acessada pelo maior número de pessoas possível. por outro lado, sai também a lógica do controle. aqui, a informação é igualmente valorizada, mas porque ela não pode ser acessada por qualquer um, mas sim por um grupo específico de pessoas. na início do projeto da arpanet, estávamos falando de outros militares estadunidenses, mas hoje em dia podemos falar, por exemplo, de pessoas que pagam para uma plataforma de publicação (substack, jornais etc.) ou que são vistas como parte de alguma rede (como grupos no zap que espalham fake news).
essas duas lógicas formam duas culturas diferentes. do lado do controle, que é o lado dos militares, temos a cibercultura. o nome vem da cibernética dos anos 50, tão focada na filtragem de dados. do lado da difusão, que é o lado dos hippies, temos a cultura digital.
a cultura digital é a cultura da prática dos fóruns de discussão, da moderação coletiva, da wikipedia. é a cultura hacker, a cultura da pirataria. são também os vírus. é a cultura do código aberto. nela, todo mundo deve poder saber como cada software funciona, pode também mudá-los, consertar erros. é a cultura do copyleft (um nome HILÁRIO, por sinal). a cultura digital está ficada nas práticas dos atores sociais, ou seja, nas interações e dinâmicas entre usuáries. é uma cultura que entende que quem faz a internet são humanos.
a cibercultura é a prática do controle dos fluxos de dados, da filtragem de informações. é a necessidade de login e senha pra todos os sites, os paywalls, os cookies. é a cultura do código fechado: só entende completamente o funcionamento daquele software quem é dono dele, é a cultura da codificação. é a cultura do copyright. essa é a cultura dos feeds algorítmicos, da inteligência artificial, das empresas de tecnologia guiando os caminhos que sus usuáries percorrem nelas, fazendo de tudo para que elus não saiam daquela rede, criando documentos legais de termos e condições tão grandes que é impossível lê-los, impossível saber com o que concordamos ao clicarmos tão facilmente no ícone “li e concordo com os termos de uso”. essa quantidade insana de dados humanamente impossível de processar é também cibercultura. quando falamos na cibercultura, falamos de tecnologias de seleção, filtragem e personalização de dados. é uma cultura que foca nos dispositivos, na técnica.
nenhuma cultura é inerentemente boa ou ruim. eu, particularmente, acho que a tensão entre as duas é o que fez a internet funcionar bem por muito tempo. a gente comentou na edição passada como algum nível de controle é importante para que possamos rastrear pessoas nocivas (como gente que pratica revenge porn ou os integrantes do gabinete do ódio), precisamos controlar o fluxo de informações para que mentiras não se alastrem e intimidades não sejam expostas. também acho que faz diferença ter um código fechado em caso de softwares que acessam nosso dinheiro, por exemplo. ao mesmo tempo, não podemos ficar nas mãos de quem tem o poder de controle desses fluxos. precisamos que a internet seja uma técnica que nos permita a criação de espaços experimentais, que dê acesso a todo tipo de informação verdadeira, que permita a quebra da hegemonia das grandes empresas, a quebra de hegemonias sociais, os padrões opressivos que todes nós conhecemos.
dito isso, o que pega pra mim é de onde partem as mudanças. na cultura digital, as mudanças são dadas e criadas pelas pessoas que usam essas técnicas, pelos internautas. o que orienta o desenvolvimento da técnica é, essencialmente, a humanidade e a prática coletiva. um exemplo disso é a wikipedia, que apesar de ter uma instituição, é basicamente organizada por internautas que se dispõem a editar e debater como editar o site1. na cibercultura, a mudança é imposta pela técnica. não somos nós que fazemos o instagram mudar, é o instagram que impõe algum novo funcionamento e a gente tem que se adaptar a isso. o mesmo vale pro google, substack, pacote office – bom, essencialmente, qualquer software que tenha um dono.
insisto muito em lembrar que empresas são feitas de pessoas. são humanos contratados por uma pessoa que detém os meios de produção que criam e desenvolvem os códigos que aparecem em nossas telas como páginas. insisto nisso porque muitas vezes falamos dessas plataformas e empresas como se elas não fossem materiais, como se não tivessem pessoas ali dentro tomando decisões e outras seguindo ordens. essas pessoas existem e precisamos cobrá-las e responsabilizá-las por seus atos. a questão é que essas pessoas priorizam a técnica, não as práticas comunitárias que se formam através de seus softwares. e por isso elas são agentes da cibercultura.
então, tá, nenhuma dessas duas culturas é inerentemente boa ou ruim, mas mais de uma ou de outra tem se mostrado bem ruim sim.
bem ruim sim
na edição Tédio e boemia, a
escreveu: “A internet [dos anos 2000] não podia me entreter sozinha, em si, como ela faz hoje, eu precisava que outra pessoa, em outro computador, fizesse isso." e fiquei com isso na cabeça. essa percepção da isa aponta à mudança que estamos todos sentindo, que é a mudança de cultura hegemônica na internet.eu não acho que tivemos um momento em que a cultura digital foi hegemônica on-line. é claro que tivemos uma valorização da cultura digital, com histórias de entretenimento com hackers como seus anti-heróis, o castells e o pierre lévy emocionados escrevendo textos acadêmicos sobre como a internet é linda e maravilhosa, e uma porrada de artigos jornalísticos reportando o crescimento das culturas on-line como algo novo e bom. teve esse momento entre os anos 90 e 2000 em que a internet era vista como uma potência boa, algo que permitia a auto-expressão e o fim de certas hegemonias culturais. mas esse momento também era carregado com os perigos da internet. a parte “boa” e a parte “perigosa” da internet vinham do mesmo lugar: a cultura digital. e as soluções para os perigos e para os nerds que mexiam com computação poderem continuar mexendo com computação vinham da cibercultura. não vou desenvolver isso, agora só confiem em mim.
existia essa tensão: até que ponto a total liberdade é boa? a total anonimidade? o total acesso? a total difusão de informações? até que ponto o controle do que está sendo dito e mostrado é positivo? até que ponto o controle protege? quando a liberdade pode virar agressiva?
são questões válidas. são questões que precisamos estar sempre respondendo e verificando nossas respostas. foi assim por toda a história da humanidade, porque a partir da metade do século xx isso mudaria? no fim das contas, tudo isso aponta pra perguntas básicas sobre a humanidade e a vida em sociedade. e, bom, nós somos humanos e vivemos em sociedade.
o que aconteceu durante os anos 90 e 2000 é que, entre essas questões, foi se montando uma internet capitalista. porque hippie sem consciência de classe é corrompido pelo capital e porque a técnica da internet vem de raiz militarista estadunidense, que é capitalista. com isso quero dizer: a internet é uma técnica que foi criada com abertura para o crescimento do capitalismo. foi possível instaurar o capitalismo no digital porque era tecnicamente possível fazer isso. e tiveram brigas, seguem tendo brigas, um dia conto de algumas delas pra vocês. mas, pra agora, temos que saber que pouco a pouco foram se criando novas hierarquias e métricas e funções. e o que guiava tudo isso era a mesma lógica capitalista, a lógica do acúmulo e exploração.
existem outras opções. sempre existem outras opções. mas a maneira com que as pessoas que estavam desenvolvendo a internet, as empresas e os governos encontraram para sustentar a internet foi através de sua capitalização. isso significa a criação do espaço para anúncios, os patrocínios, os paywalls, as priorizações de posts, todas as maneiras que você conhece de ganhar dinheiro on-line. e, para saber onde vale gastar esse dinheiro, começaram então a criar as curtidas, as visualizações, o ícone de verificado, os cookies. tudo isso serve ao mesmo propósito de venda, de acúmulo de capital, de exploração da força de trabalho humana e dos recursos terrestres. não vamos nos esquecer que cada dado é composto por uma série de choquinhos. cada choquinho é um pouco de energia gasta. de onde vem essa energia?
a lógica capitalista se beneficia da cibercultura. a cibercultura reproduz a lógica capitalista. elas se retroalimentam. elas são boas para aqueles que detêm os meios de produção, então investem mais e mais na cibercultura. criaram as hierarquias entre usuáries, os algoritmos que priorizam vendas e acúmulo de capital financeiro e social, técnicas de aprendizado (acúmulo e articulação) de dados, estão investindo da inteligência artificial. tudo faz parte da cibercultura e tudo é perigoso para nós.
é perigoso para nós
porque passamos a depender de bilionários, o que significa que dependemos de pessoas que só se importam com a exploração dos outros. porque nosso tempo de trabalho e de lazer está sendo usado para gerar capital para grandes empresas. porque isso é exploração da nossa força de trabalho. porque ficamos exaustes e doentes, fisicamente e mentalmente. porque isso está criando uma crise climática no nosso planeta. porque a ubiquidade da cibercultura tem nos isolado uns dos outros e transformado nossa própria capacidade de desejar.
talvez não fosse assim se a internet não fosse essa técnica ubíqua, que está em todo lugar e que somos obrigades a usar para tudo que fazemos na nossa vidinha pós-pós-contemporânea. mas a internet taí. a internet tá viva e a tomada pela cibercultura.
tomada pela cibercultura
quando vejo alguém falando que a internet morreu, entendo que o que a pessoa está dizendo é que as plataformas que usamos não são focadas nas práticas sociais de internautas. quando a isa fala que, antes, a internet precisava de outra pessoa em outro computador para que aquilo fosse legal, ela tá dizendo que, antes, o que movimentava muito do uso da internet era a interação entre usuáries. eram conversas que levavam a descobertas, debates, amizades, projetos. falávamos em conexão num sentido duplo: a conexão de cabos e conexão de pessoas. ainda havia a mediação dos dispositivos digitais, isso é fundamental na internet, é a sua estrutura. mas o foco dessa mediação estava nos agentes humanos, no que nós trazíamos para os computadores. é claro que parte da organização se dava pela plataforma que usávamos, mas eram les usuáries que a transformavam a partir de seus usos, de suas práticas, de suas lógicas. a gente podia mexer em parte dos códigos, mudar o design, criar extensões. existiam formas de mexer no que nos era dado.
hoje, o que acontece é que nós humanos que temos que nos adaptar à técnica. as empresas mudam suas plataformas a partir de seus interesses econômicos e nós, usuáries, temos que nos adaptar. os limites de transformação estão cada vez mais limitados, o que significa que nossas práticas estão cada vez mais limitadas.
a internet não mudou. a internet não morreu. nós a usamos todos os dias do jeitinho que ela sempre foi. mas as empresas que desenvolvem os softwares que usamos tomaram essa técnica para seus ganhos privados. e nós somos extremamente afetades com isso.
quando alguém fala que sente falta da internet antiga ou que a internet morreu, o que a pessoa está dizendo é que ela sente falta de práticas da cultura digital. sentimos falta de focarmos nas práticas sociais que podemos ter ao usar essa técnica. sentimos falta da humanidade.
falta da humanidade
olha, essa edição não é pra ninguém achar que estamos perdidos, é o fim do mundo ou da humanidade ou qualquer coisa do tipo. isso não é verdade. meu intuito com essa newsletter é apresentar essa proposta de pensar a internet a partir dessas duas culturas, a cibercultura e a cultura digital. a proposta é pensar nos impactos das raizes militares e hippies sem consciência de classe. e a ideia de apresentar isso tudo é porque me parece útil pra elaborar nossas questões pessoais e sociais relacionadas à internet e à digitalidade como um todo.
tenho visto uma crescente ano após ano de internautas angustiades com a internet, gente que parece quase estar numa espécie de luto. eu, como boa criaturinha pra quem psicanálise funciona, acredito que entender de onde vem essa angústia, nomear e apontar as causas dela nos ajuda a resolver o problema.
e aí é que tá: existe solução. existem milhões de soluções. e por mais que esse seja um jeito bizarro de fazer isso, esse é um convite a vocês também pensarem essas soluções, darem propostas, se articularem. esse é um convite a fazermos isso juntes. porque eu não sei ainda se fecho numa ou algumas respostas, eu também tenho pensado e estudado e conversado com muita gente. tem dia que a vontade é de quebrar tudo, tem dia que acredito mais nos sistemas que temos. o que tenho certeza é que a internet é uma técnica. mas nós somos humanos. e são humanos, juntes, que criamos nossas culturas.
e se você quiser ler um artigo acadêmico que estabelece bem essas duas culturas, recomendo esse daqui.
bjoks,
clara
pra mais sobre o funcionamento da wikipedia e o estado atual das coisas, recomendo o episódio wikipedia is all the web has left ft. molly white, do podcast better offline
realmente a internet ainda tá aí existindo e fazendo com que a gente tente buscar essa troca, essa humanidade que tínhamos nos anos 2000. no final, sem resposta alguma, só consigo pensar em como falamos para o nada agora. todo mundo quer trocar, mas ninguém troca. os comentários que antes buscavam uma relação, quem sabe uma amizade ou um convite pra conhecer o "mundo" da outra pessoa, viraram sinônimo de status pois hoje em dia são tão raros. o like automático prevalece. cada pessoa fala com uma tela em branco torcendo pra que tenha uma resposta porque ainda somos humanos e precisamos de alguma validação. concordo contigo quando não temos resposta e, de alguma forma, estamos todos buscando uma, mas que dá saudade dá.
adoro te ler, clara. sinto que minha cabecinha sempre dá uma explodida, da melhor forma possível.
se o podcast "reply all" acabou, a internet pode ter morrido sim (passando só pela piada, dsclp)