estudo de caso: chico buarque marombado de inteligência artificial
isso NÃO é uma hiperfixação!!!
🛸 olá, astronautas! 🛸
estava eu escrevendo uma edição sobre essas expansões de quadros e capas de álbuns por ia ao som de lulu santos - geração pop quando notei que precisava me estender em algo específico. fiquei meio obcecada por todas essas imagens que estão gerando por aí, todas tão feias e desnecessárias, mas escolhendo minhas preferidas pra colocar nesta humilde newsletter, me dei conta de que uma era mais importante que todas as outras: o chico buarque marombado de inteligência artificial.
aos meus leitores que precisam de descrição de imagens, não descrevi essa aqui porque farei agora um trabalho minucioso de descrição, e seria redundante colocar texto alternativo. então, por favor, mantenham-se aqui também.
o que falar do chico buarque marombado de inteligência artificial? primeiro que sinto que eu sou o público alvo para esta imagem. afinal, eu sou uma millennial de esquerda que cresceu com um crush gigantesco no chico buarque jovenzinho e que tinha como álbum preferido justamente chico buarque 1978 (que, caso você não saiba, é o da imagem) e que daí cresceu e descobriu que tem o pior tipo de homem que existe, o nerd marombado (eres um? vem tc!). pense: kim namjoon do bts, daveed diggs, jack antonoff (mas esse é com autocrítica). pois é, é complicado. então, tipo, colocar o chico buarque marombado, bom… é uma escolha. uma escolha que me ataca pessoalmente.
vamos deixar bem claro-clara: eu NÃO sinto atração sexual por esta imagem gerada por inteligência artificial. esse é um surto que não me pertence.
dito isso, devo dizer que essa imagem é, pra mim, o melhor dos dois mundos. é uma fic self-insert de tumblr. é um objeto perfeito para um doutorado em masculinidades. porque, gente, imagina ter os neurônios pra pegar o MIRRADO do chico buarque e colocar ele num corpão do namjoon de 2020?! agora imagine ter a capacidade de fazer essa sinapse mas não ter a capacidade técnica de desenhar um peitão?!?!?!?!
porque, tipo, ok. eu até aceito que colocar um corpo malhado no chico buarque diz que os padrões de homem não estão lá muito dez. não sei se foi a pessoa que escreveu o prompt que pediu pro chico estar malhado ou se a ia que assumiu que um corpo masculino é malhado, mas de qualquer forma temos aí um dado para nosso doutorado imaginário em estudos de gênero. mas é isso: eu vivo nesse tempo, eu vejo o tanto de homem indo e voltando da academia no meu bairro, sei que existem padrões de corpo para os homens. ainda é insano meter uns músculos no chico buarque?! definitivamente! mas ok, ultrapassamos o surto dessa ideia. agora POR QUE ele tem formato de homem peitudo mas não tem nenhum desenho de peito em sua camiseta semi-aberta?!?!?! a capa original tem as cores saturadas a ponto da gente conseguir ver a textura da pele dele, e daí chega a parte da ia e é tudo liso esquisito!!! com peitos, mas sem peitos!!! o que é isso?!? o gato de schrödinger dos seios masculinos?!?! até o boneco ken é fabricado com algo mais semelhante a um corpo do que isso. plmdds! e qual foi da escolha da camiseta meio aberta mostrando os peitos?! quem disse que ele não estava com uma regata branca por baixo?! eu não sei!!!! de onde a inteligência artificial tirou isso!!
mas quiséramos nós que a questão fosse apenas essa. a verdade é que muito me intriga nessa imagem. além das tetas artificiais de chico buarque, gosto que meteram uma corcundinha de malhado nele (algo que saiu um pouco de moda, aliás! já notaram o quanto os malhados atuais têm a coluna reta? acho um pouco esquisito. o que fizeram com o charme discreto da cifose, lordose e escoliose?). o estilo da camiseta branca também me pega demais. acho que é a manga curta abotoada. porque imagina olhar pro CHICO BUARQUE e pensar po sabe como ele ficaria melhor ainda? de bração e camiseta esporte fino. é uma falta de respeito tão grande com a história da moda e dos movimentos de esquerda nacionais e internacionais que, sei lá, causa até certa comoção.
me chama atenção como tudo gerado pela IA é liso. o corpo malhado do chico buarque artificial é liso. a camiseta amarrotada é lisa. o que assumo que seriam paredes descascadas de uma casa ao fundo também são lisas. me lembra a abertura d’a salvação do belo, do byung-chul han, em que ele diz:
o liso é a marca do presente. é ele que conecta as esculturas de jeff koons, iphones e a depilação à brasileira, como é conhecida a depilação total na europa. por que achamos belo, nos dias de hoje, o liso? além do efeito estético, nele se reflete um imperativo social universal. ele corporifica a sociedade da positividade atual. o liso não quebra. também não opõe resistência. ele exige likes. o objeto liso estingue seus contrários. toda negatividade é posta de lado.
quando o han fala de positividade/ negatividade, ele fala da noção do outro: negativo é aquilo que não temos em nós (o outro), enquanto positivo é o eco de nós mesmos. a tese dele é que, ao sermos algoritmicamente obrigados a entrar em contato apenas com o que nos identificamos/ gostamos, perdemos a capacidade de lidar com o outro (como uma noção) e, se não temos o outro, se não temos algo que não conhecemos, não é possível mais que exista beleza.
a tradução do alemão pro português assume a palavra “liso”, mas por vezes, percebemos que a palavra original pode ser intercambiada por “macio” e “suave”. não que isso importe pra gente agora, mas é que tem a ver com a minha pesquisa de mestrado e, por isso, sou obrigada a repetir toda vez que escrevo sobre o assunto. trago essa noção aqui mais pra vocês ficarem nóia vendo tudo liso e macio e suave que nem eu estou há literais anos. enfim.
durante a salvação do belo, o han entra em uma jornada pessoal contra o jeff koons. ele diz:
é o próprio jeff koons quem diz que o observador de suas obras deveria emitir apenas um simples “uau”. sobre a sua arte não é necessário se fazer nenhum juízo nem interpretação, hermenêutica, reflexão ou pensamento. ela se mantém, de modo consciente, no campo do infantil, do banal, do imperturbável, relaxante, desarmante e aliviante. ela está esvaziada, seja de profundidade, seja de superficialidade; isto é, está esvaziada e toda tiefsinn, quer dizer, de pensamento capaz de se aprofundar e de se tornar melancólico. o seu lema é: “abraçar o observador”. nada deve traumatizar, machucar ou assustar. a arte para jeff koons não é outra coisa se não “beleza”, “alegria” e “comunicação”.
diante de suas esculturas lisas surte uma “coerção tátil” de tocá-las, até mesmo um desejo de chupá-las. […]
a gente não precisava dessa última frase aí pro nosso argumento, mas essa é a literalmente a coisa mais engraçada que o han já escreveu e eu preciso perguntar a vocês:
não, tá, mas agora voltando à nossa análise.
o que acho interessante dessa bola que o han levanta é que, individualmente, sendo o conjunto de obra de um artista em específico, cara, deixa o cara na brisa dele. você não precisa gostar muito menos tocar ou chupar um jeff koons. mas quando a lisura começa a poder ser produzida em massa pela própria máquina que ameaça substituir também em massa artistas visuais, daí realmente temos um problema. porque deixa de ser um estilo ou, que seja, uma ~trend~ publicitária/ de arte comercial, e se torna um problema da cultura visual de uma geração. e vamos desenvolver essa frase inteira numa próxima edição, mas aqui acho interessante observar como o chico buarque marombado de ia é um bom estudo de caso.
a capa original do álbum não foi inovadora na sua forma – um close da cara do cantor –, mas foi um momento paradigmático na carreira do chico buarque por ser o momento em que ele raspou seu bigodinho icônico dos anos anteriores. o chico não tem mais seus lindos pêlos faciais, mas a capa não é esteticamente lisa, nos termos do han. vemos a textura de sua pele, de sua camiseta, do seu cabelo, das plantas que estão ao seu fundo. a camiseta amarrotada é completamente diferente do cabelo penteado tentando alisar seus cachinhos, é a própria imagem do bom moço de esquerda.
mas a inteligência artificial não produz a mesma diferença. a lisura dos peitões sem definição é idêntica à lisura da parede descascada. e nem os peitões nem a parede se assemelham ao que é um peitão ou uma parede materiais, reais, físicos. a máquina não consegue criar essas diferenças tão fundamentais pra nós, humanos.
talvez o que mais aponte essa diferença na imagem expandida é a planta. a sequência da planta fotografada (material, física, agora morta porque esse álbum é de 1978) e da planta gerada pela ia é gritante. a planta artificial nem tem foco. ela é uma mancha, algo que até pode remeter a uma samambaia, mas que se tirada de contexto seria um borrão.
ah, clara, mas isso é, tipo, o movimento impressionista todo. cara, verdade. mas os quadros impressionistas tinham volume e intenção. o que essa imagem gerada por uma máquina nos traz? o que o prompt da pessoa que pediu para a máquina gerar a imagem nos traz? não tô aqui pra dizer que uma máquina não deveria gerar imagens, não é essa a questão. minhas questões são muito mais voltadas pra como e por quê essas técnicas estão sendo desenvolvidas e utilizadas – que é o que estava escrevendo na newsletter que está pela metade no meu arquivo. mas quanto mais eu olhava pra essa imagem do chico buarque, mais bolada eu ficava.
mis amigues, olhemos para ela mais uma vez:
na moral. tipo. na moralzona. que porra é essa?!
passando pelo choque do chico buarque marombado, da corcundinha, dos peitões, da borda da manga levemente mais apertada que o resto da camiseta porque ela está abotoada no bíceps torneado do chico artificial. passando pela esquisitice das plantas. que fundo é esse? tipo. mesmo. o que tá acontecendo aí? eu nem consigo descrever.
entendo que era pra ser uma casa meio mal acabada, mas o que é isso?!?! os pedaços de parede sem massa são tão perfeitamente padronizados! e nada tem exatamente uma continuação. e aquilo em cima era pra ser um telhado? telhas cinzas? cheias de concreto? o fundo parece aquelas imagens digitais que parecem coisas mas não são nada. mas não de um jeito proposital. só de um jeito mal feito.
muitos artistas falam mal de imagens geradas por ia por não terem “técnica”. chamam de feio, falam que a máquina não consegue desenhar mãos e sei lá mais o quê. particularmente, também acho a maioria das coisas feias, mas até aí também tem um bando de humano fazendo coisas horrorosas. você já viu uma “obra” do banksy? é horroroso. então, tipo, não por isso. não acho que máquinas sejam incapazes de produzir uma imagem bonita. também não acho que o problema é exatamente a técnica. com muitos dados e mexendo alguns códigos, tenho certeza que ias poderão gerar imagens extremamente realistas ou aplicar qualquer estilo de desenho/ pintura sem essas coisas que notamos como “falhas”. ia é uma técnica em desenvolvimento, afinal de contas. mas também é meio que só isso, uma técnica. uma técnica que pode dar muitos problemas – de demissão em massa a mudar o paradigma do que entendemos como verdade (deepfakes etc.).
a real é que cada dia mais tô na brisa do pior francês que já emitiu um pensamento, o simondon. ele bate muito na tecla de que a questão é não haver hierarquia entre humano-máquina, mas sim entender ambos como parte da mesma coisa, o mundo. a máquina é capaz de guardar e gerar coisas que humanos não conseguem e humanos são capazes de criar e perceber coisas que as máquinas não conseguem. isso não faz nenhum melhor ou pior, só diferentes. mas a gente sabe que as pessoas que estão envolvidas com ia são tecnocratas. e quem luta contra a tecnocracia muitas vezes é bem, hm, antropocrata? naturalcrata? sei lá. mas são pessoas que costumam diminuir a importância das máquinas, subjugando-as a nós. e o simondon tem me convencido muito de que o lance é só não subjugar nada a nada. hora de acabar com noções exploratórias seja em relação a seres vivos ou não vivos, naturais ou artificiais.
mas enquanto essa revolução não acontece, estarei aqui, pensando no chico buarque marombado de ia.
Queria deixar minha participação aqui e propor um outro questionamento: que teto é esse ??? Que tipo de material o IA tentou reproduzir? Massinha play dough? Rocambole de chocolate? Aquele ossinho de carne ensopada?
viver no futuro é realmente muito incrível!!! eu achava essa capa normal e agora olhei tanto pro chico maromba que tô achando a coisa mais uncanny do mundo