imaginação artificial
sem querer dando aula de arte + minhas expansões de capas de álbum e quadros feitas com ia preferidas
🛸 olá, astronautas! 🛸
todos fechem os olhos e respirem fundo. estão mais calmos? porque hoje vamos falar sobre inteligência artificial. de novo. eu sinto muito, mas não pude me conter. também foi mal aí pelo título de “poema” de lambe.
admito que fiquei um pouco obcecada com as contas verificadas no tuíter postando threads e mais threads de como quadros e capas de álbum seriam se fossem expandidos por ia. a primeira coisa que me chamou atenção na primeira thread que vi com os tais “quadros expandidos” foi, ironicamente, o texto:
a primeira coisa é que a conta pergunta: fim dos FOTÓGRAFOS?, e logo em seguida mostra uma PINTURA. isso me mata. de verdade. essa é a coisa que mais me pegou nessa ~trend toda. como é que a gente vai falar com alguém que não sabe a diferença entre fotografia e pintura?! particularmente, não tenho a menor capacidade de dialogar assim. juro que tô rindo disso até hoje.
e, assim, não me levem a mal, acho que tem coisas interessantíssimas pra tirar só disso. é muito comum que as pessoas se impressionem com pinturas e esculturas realistas, isso vem de muito antes da internet, e tem muito a ver com um projeto de falta de educação artística e de história da arte (e de história em geral, afinal os mais conhecidos por serem contra arte não realista são os nazistas, mas, tipo, não só eles, os soviéticos não eram muito melhores nesse quesito em particular, e nem vamos começar a falar da lista de intelectuais que reclamaram do modernismo independente de suas visões políticas1), mas não tem como ver uma coisa dessas e não pensar imediatamente puta que pariuuuu vai se fudeeee.
mas, ok, depois de xingar bastante, vamos lá. vamos tentar falar sobre isso com o coração aberto.
vamos tentar falar sobre isso com o coração aberto
arte expandida por IA tem sido um assunto frequente nas conversas com minha amiga lulu. ela, muito mais generosa do que eu, trouxe o primeiro ponto que trago aqui. porque a inteligência artificial generativa é meio que a primeira vez que muita gente que nunca teve nenhum contato com arte pôde descobrir a sensação de ver algo que só existe na sua cabeça fora da sua cabeça. e, bicho, isso é poderoso.
sendo alguém criativo ou não, todo mundo tem imaginação. e todo mundo imagina como seria juntar duas coisas que gosta, ou se algo diferente acontecesse como seria. o fandom é um excelente exemplo pra isso. nada mais comum num fandom do que alguém imaginando como seria se algum personagem namorasse outro, se um famoso vestisse uma roupa ridícula, se dois cantores fizessem uma colaboração absurda. e a graça do fandom é que sempre vai ter um maluco que vai tirar um tempo da vida pra desenhar o yoongi vestido de tangerina, escrever um romance entre a selena gomez e o faustão ou fazer um mash-up de ivete sangalo com oasis. eu, por exemplo, fico tristíssima de não saber mexer com edição de som pra criar o feat. do agust d com a pabllo vittar que algume tuiteire me pôs na cabeça. e agora tenho que viver com o fato de que nunca vou ter muita ideia de como é isso porque não tenho essa capacidade técnica e porque, convenhamos, taí duas pessoas bem distantes pra fazerem uma música em colaboração. mas, apesar da pequena frustração vinda do desejo, convivo com isso na paz, porque sei me contentar com a minha imaginação. MAS com IA eu meio que não preciso mais me contentar com a virtualidade da minha cabeça e posso pedir pra uma máquina me ajudar a transformar em virtualidade da digitalidade.
não é à toa que a gente fala de deus como o criador. criar é poderoso, é modificar a realidade, materializar novos mundos. eu não quero ser muito tilelê sentimental por causa de arte aqui, mas não deixa de ser emocionante ver algo que não existia passar a existir porque você que fez. eu nunca vou esquecer a sensação de ver a primeira roupa que pintei pronta por causa disso. foi uma sensação muito única de ver algo que sempre soube que podia existir existindo de fato. isso é foda. e, pra muitas das pessoas que estão mexendo com ia gerativo, é esse o sentimento: uau, isso pode existir fora da minha cabeça.
muito legal, muito bonito. mas o processo de existir fora da cabeça é o processo de materializar, e quando vejo esses verificados postando versão expandida de quadro, o que me vem na cabeça é que, uau, eles não fazem ideia do que é ter limites.
uau, eles não fazem ideia do que é ter limites
sendo bem honesta, eu tenho MUITOS problemas com limites. até escrever em caderno pautado já foi difícil pra mim uma época. mas meio que essa é a parte legal quando estamos tratando de arte: como podemos criar coisas nos limites do mundo? quais limites aceitamos e quais limites conseguimos ultrapassar? como fazemos esses limites trabalharem a nosso favor?
vamos a um exemplo prático. a capa do álbum todos os olhos, do tom zé. essa é uma capa clássica, icônica, paradigmática. você provavelmente já ouviu a história e já recontou ela por aí. porque é boa. 1973, ditadura militar rolando, tom zé fez um álbum com suas críticas sociais foda e precisava de uma capa para o lp (vamos lembrar que era lp! estamos falando de um objeto grande! não um ícone que vai ficar ali no cantinho quando você colocar a música pra tocar no seu celular). e o que ele queria era meio que mandar todo mundo tomar no cu, o que, tipo, justo. então, ele decidiu junto com a galera de arte do álbum que a capa seria um olho, mas não o olho que esperamos, um outro olho, afinal, o álbum chama todos os olhos e “se são todos os olhos, o olho do cu faz parte”. então eles pensaram po bora colocar uma bolinha de gude no cu e essa vai ser a capa.
10/10, lógica impecável. mas acontece que fotografar um cu com uma bolinha de gude pra parecer um olho não é tão simples assim e a treta toda o tom zé explica pra você, mas o fim da história é que maquiaram a boca de uma pessoa e colocaram a bolinha de gude e essa foi a capa do álbum. uma boca que era pra ser um cu se passando por um olho. funciona. são todos os olhos.
a história do cu obviamente se espalhou e é a grande mística em torno do álbum. sem contar que, visualmente, é uma capa muito massa mesmo. enfim. o ponto é que toda essa história só pode existir por um único motivo: a capa do lp tem um limite de tamanho. é porque é aquele exato espaço que precisa ser preenchido que podemos ter o close estourado da foto que faz a gente não saber direito o que tá acontecendo nela, o que estamos vendo.
isso, mis amigues, chama-se composição. tu olha pro limite material com que cê vai trabalhar (uma tela, uma capa de lp, uma parede, um pedaço de mármore etc) e pensa hmmm como vou distribuir o que quero no espaço pra que gere o efeito que busco? e, pra isso, você usa noções como distribuição de elementos, volume, cores, diferentes técnicas (tipos de pincelada, lixa, acabamento, sei lá), mistura de materiais etc. são essas as coisas que você vai usar pra causar o efeito que você quer quando a obra estiver pronta. e isso, querides, vale pra qualquer coisa-que-se-vê. fotografia, pintura, desenho, escultura, filme, completa aí como quiser.
o limite é fundamental porque é o limite que estrutura a obra. e o que a gente mais precisava aprender em aula de artes (mas que a gente não aprende porque o estado ignora por completo a importância de se aprender artes) é exatamente essas formas de ver.
essas formas de ver
gosto da expressão “formas de ver” porque é sobre como olhamos, absorvemos e interpretamos uma imagem. é meio que essa nossa educação (muitas vezes aprendida inconscientemente) que nos faz olhar de certa forma e não outra pra uma imagem.
gosto muito do livro da giselle beiguelman sobre digitalidade porque ela trata muito da questão das formas de ver no nosso mundo tomado pela digitalidade. o livro chama políticas da imagem - vigilância e resistência na dadosfera, e é composto de 6 ensaios em que beiguelman explora questões que surgem por causa da maneira que o digital e os dispositivos digitais se impõem nas nossas vidas. talvez já tenha citado esse trecho aqui, mas acho um excelente resumo:
Alteram-se com a digitalização da cultura e da ubiquidade das redes, os processos de distribuição de imagem e as formas de ver. Cada vez mais mediados por diferentes dispositivos simultâneos, esses regimes emergentes consolidaram novos modos de criar, de olhar e também de ser visto. Ambivalente, a nova cultura visual que se instaura com as redes oscila entre polos contraditórios. Nela estão contidas possibilidades de democratização do acesso ao audiovisual, novos regimes estéticos, superexposição, vigilância e formatos inéditos de padronização (da imagem e do olhar).
não existe uma forma de ver, muito menos existe uma forma de ver melhor do que a outra. são culturas diferentes que nos ensinam a observar nosso entorno de diferentes maneiras, que nos fazem preferir alguns tipos de composição ou mesmo procurar por elas em uma imagem. muitas vezes, nossos incômodos com certas imagens é que elas não atendem algumas das coisas que estamos acostumados (ex: algo não estar totalmente centralizado ou a perspectiva não atender sempre a mesma medida etc.), porque apesar de não existir uma forma de ver melhor do que a outra, toda época e sociedade escolhe uma pra chamar de “melhor” a partir dos seus próprios valores e vai se esforçar pra educar as pessoas pra reproduzirem essa visão.
isso não é bom, mas faz parte. então, de certa forma, a inteligência artificial impor uma forma de ver não é tããão diferente assim de certas instituições acadêmicas e artísticas, né? nesse sentido, até que não. mas acontece que em instituições acadêmicas e artísticas o que acontece é que tem um bando de gente pesquisando e discutindo sobre o assunto o tempo inteiro. tem briga. tem discordância. tem rachas. estamos falando de centenas de pessoas vindas de lugares diferentes com histórias de vida diferentes sentando e discutindo umas com as outras. mesmo que seja muito difícil mudar algo tão sistematizado em uma estrutura institucional, ainda é possível encontrar caminhos. ainda existem pessoas que viram outras coisas, ainda existem revoltas, ainda existe cansaço, ainda existe a chance de mudar de ideia.
mas essa nova forma de ver que se impõe com os dispositivos digitais não funciona dessa mesma forma. quem está dando a letra aqui não são mais as pessoas que se dedicam a pensar e viver as questões levantadas pela visualidade (pra não ficarmos só na arte aqui), mas gente que tá ligada a criar códigos de reconhecimento e geração de padrões. estamos falando de pessoas que buscam a repetição pela repetição, pessoas que se dedicam a uma técnica sem refletir o que ela traz consigo. e isso é um problema.
vejo o caso das imagens geradas por ia como uma versão hiperbólica do fenômeno que a giselle beiguelman descreve. a imagem gerada por ia é o auge da padronização de uma forma de ver, que se repete em massa (pois é gerada por máquinas) e transforma nosso olhar em uma única coisa. com a ia, temos apenas uma opção. e por mais que exista uma democratização do acesso ao audiovisual, que imagens e sons são esses que estamos vendo e ouvindo? queremos ter acesso a isso? eu, particularmente, preferia que ninguém tivesse.
algum entusiasta de ia agora pode dizer: po, mas quem escolhe o que vai ser criado é a pessoa que pede para a máquina criar. afinal, apesar do nome, a ia não pensa, ela só faz o que mandam. é assim que a gente consegue, por exemplo, duas expansões diferentes do quadro da mona lisa.
mas, cara, depois de tudo que a gente falou sobre limite e composição visual, você quer mesmo uma versão expandida de um quadro? ainda mais de um quadro feio desses?! o que mudou na sua vida com essas duas expansões? nada. você só está com os olhos mais cansados e agora temos mais dados pra transformar em energia e estocar num galpão gigantesco no deserto e contribuir mais uns bits pra destruição do planeta. isso vale a pena?
isso vale a pena?
escrevendo esse último parágrafo, lembrei daquela palhaçada que foi gente jogando sopa em quadros famosos porque a tinta óleo é ruim pro meio ambiente. eu juro por deus, os jovens precisam aprender a canalizar a energia deles pra coisas que importam. mas enfim. lembrei disso porque o tanto de tinta óleo que é produzida no mundo e o que um quadro do van gogh (que foi o que levou sopada) impacta me parece muito diferente de uma expansão de ia. eu tô ok com a tinta óleo porque quando eu e uma porrada de gente vê um quadro do mondrian, ele nos eleva pra um tipo de emoção e de estado que as pessoas estão até hoje buscando palavras pra descrever.
mas, porra, eu precisava ver essa merdinha?
a resposta é: não. isso estragou o quadro. nota 0 em composição pro palhaço que pediu pra gerar essa merda e pros tontos que criaram um código pra que isso fosse gerado.
mas, ó, vamos deixar algo bem explícito aqui: nada disso quer dizer que tudo gerado por ia é inerentemente ruim. mas os perigos da ia gerativa, no momento, são muito maiores do que os benefícios. acredito que existe uma maneira de lidarmos com ia como algo que nos ajuda de fato e não padroniza e homogeniza nossas formas de ver e ouvir. mas enquanto a prioridade seguir sendo produção e consumo em grandes quantidades, vai ser difícil não cairmos nessas armadilhas. eu tenho buscado muito pessoas que tenham propostas diferentes do uso de ia, mas não tenho encontrado muita coisa interessante e que passe de “vai ajudar nas burocracias”. se vocês souberem de algo ou pensarem nessas opções, por favor, me contem!
minhas expansões prediletas
aproveitei a última newsletter para um estudo de caso sobre a expansão de ia da capa do álbum do chico buarque - chico buarque. foi muito divertido escrever esse estudo e ele saiu exatamente dessa sessão, em que falo um pouco sobre expansões absurdas que vi por aí.
caso queira ver mais gente que paga pra ter verificado no tuíter fazendo coisas mal-feitas, vocês podem ver a thread de álbuns brasileiros, álbuns gringos, pinturas famosas, mais pinturas famosas. eu também peço perdão por não descrever as imagens com texto alternativo, mas tomei essa liberdade porque achei que acabaria sendo redundante junto com os textos em que comento as imagens. sem contar que esse é um trabalho gigantesco e eu sou apenas uma bolsista da universidade.
é o tchan do brasil; é o tchan
eu sinto que essa imagem saiu de um terror noturno de alguém pq tipo O QUE RAIOS ESTÁ ACONTECENDO AQUI?!!?!?!? tem muita coisa que me intriga nessa imagem. a primeira, obviamente, a cara deformada no limite do álbum “real”. a cor da pele da mulher ser também levemente mais branca me deixa bolada. todas as mãos são um desastre, mas ia que não sabe fazer mão já foi algo muito comentado por aí. a coxona artificial também me desespera. o tanto de vermelho usado nela me deixa desconfortável pela proposta geral, isso aqui não é expressionismo alemão, sabe?
agora o que bate REAL pra mim é o VULTO de camiseta verde. esse sorriso apagado, o lenço no pescoço, o que quer que seja que ele tem no braço… isso só pode ser uma assombração muito específica de um terror noturno.
teenage dream; katy perry
a katy perry deitada na versão gigante da gata da taylor swifty realmente era algo que nenhum de nós podia imaginar. ainda assim, cá estamos. o que é o “pano” preto sem pelo de gato, pra mim, será sempre um mistério.
a moça com brinco de pérola; vermeer
quem, mas QUEM teve a ideia dessa expansão?!?!?! DEVIA IR PRESO. O QUE RAIOS É ISTO?!??!?!?!!? NINGUÉM PRECISAVA DISSO!!!! MAS CÁ ESTAMOS NOVAMENTE!!!!! esse fundo sem NADA e uma tentativa de criança mal posicionada e total e completamente deformada tal como se fosse o boneco chucky com suas madeixas ruivas escondidas num lenço azul depois de ser atropelado por um carro.
obrigada por nos mostrarem como seria se o vermeer fosse não apenas um pintor merda, mas também nunca tivesse contato com um humano sequer. e, cacete, vai estudar história antes de meter qualquer coisa do lado de uma pintura dessas!!!
guernica; picasso
falando em saber como seria se um pintor bom fosse merda… eu nem gosto de picasso, mas puta que me pariu, viu. esse aqui é o que mais me bate a falta de respeito com a composição do quadro. sem contar que a expansão nem acertou o estilo 😭😭
ao mesmo tempo, tem duas coisas que gosto nessa expansão. a primeira é o desrespeito com o picasso, que merece ser desrespeitado mesmo. a segunda é que me parece um caso exemplar da diferença que é algo feito materialmente com pincel, tinta e tela com uma dimensão enorme e algo feito por computador. as mudanças são tão bruscas do original pro expandido que dava pra dar uma aula deliciosa só com essa imagem feia.
santa ceia; da vinci
aqui descobrimos como seria se o da vinci tivesse atuado profissionalmente no começo do século XX. eu, particularmente, preferia que ele nunca tivesse se aventurado pelas artes independente do século.
por fim, temos o grande…
todos os olhos; tom zé
covardes.
com essa nos despedimos!
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bjoks,
clara
não que a gente deva só aceitar a visão modernista que costuma ser ensinada em cursos de artes, mas esse é um assunto longo e não tem a ver com essa newsletter! se quiserem discutir arte comigo, me paguem um drink
eis a minha versão preferida de capa de álbum horrorosa expandida por ia: https://cdn.arstechnica.net/wp-content/uploads/2023/05/FxKpLWiXsAEZxBq-980x980.jpg
perdi tudo nesse trecho (sendo bem honesta, eu tenho MUITOS problemas com limites. até escrever em caderno pautado já foi difícil pra mim uma época. ) porque é basicamente um resumo de um dos ensaios da Elena Ferrante em As margens e o ditado